Tarsila do Amaral
O crítico de arte Jacob Klintowitz foi preciso ao afirmar que Tarsila do Amaral tornou-se o símbolo de um acontecimento do qual esteve ausente: a Semana de Arte Moderna. Tarsila, espírito inquieto, despontou à margem da Semana, integrando-se ao ideário modernista tempos depois, primeiro com obras de influências nitidamente cubistas e mais tarde com as estranhas figuras da chamada fase antropofágica.
Suas ligações com a arte européia, em todos esses momentos, são fortíssimas, mas Tarsila conseguiu, apesar disso, incorporar um espírito de encantadora brasilidade ao seu trabalho.
Tarsila do Amaral nasceu em 1886, na Fazenda São Bernardo, em Capivari (SP). De família rica, teve uma infância paradoxal: moradora de fazenda, crescendo entre bichos e plantas, vivia simultaneamente um cotidiano de menina rica: tudo o que sua família usava - roupas e utensílios – vinha diretamente da Europa. Cresceu aristocrática em meio a paisagens simples e gente humilde.
Seu amor à arte iniciou com a família, em saraus domésticos em que a mãe tocava piano e o pai lia poemas em francês.
Aos 16 anos foi estudar em Barcelona, na Espanha, onde literatura e desenhos passaram a fazer parte de sua vida. Voltou para o Brasil em 1906, a fim de casar-se com o marido que sua família escolhera. União que se revelou infeliz dada a diferença cultural gritante entre os cônjuges. Do casamento fracassado – mais tarde anulado - teve uma filha: Dulce.
A essa altura, uma decidida Tarsila já emergira e agora se esforçava para seguir a vocação para a pintura. No início de seus estudos artísticos, com os escultores Zadig e Mantovani, e com o pintor Pedro Alexandrino, não havia ainda os sinais do que ela viria a ser. Eram somente naturezas mortas e paisagens, ainda muito distantes de seu surto criativo em outros momentos.
Depois disso fez uma rápida passagem entre os impressionistas e em 1920 seguiu para a França, onde freqüentou a Academia Julian, e o atelier do retratista Émile Renard. Algumas de suas pinturas desse período apontam influências de Renard, então um artista da moda: tons de cor desmaiados, com predomínio do azul. Esses também muito distantes da arte que ela viria a construir, mas já se pode verificar nessas telas a promessa do que viria futuramente sob as formas simplificadas e a iluminação particular.
Em 1922, Tarsila se considerava vitoriosa: estava expondo no Salão dos Artistas Franceses, em Paris. É o ano em que pintará A Espanhola (Paquita), mas ainda não ousava altos e novos vôos estéticos. Retorna ao Brasil no Massilia, navio de luxo, quatro meses depois da efervescência da Semana de Arte Moderna. A amiga e também pintora Anita Malfatti a apresenta a amigos intelectuais vanguardistas e que participam da Revista Klaxon: Oswald, Mário, Menotti Del Picchia, Sérgio Buarque de Holanda, Graça Aranha. Devidamente identificada com o ideário modernista, envolve-se afetiva e artisticamente com os novos amigos. Sua beleza física impressionava a todos nos salões elegantes e nos círculos intelectuais.
Com Oswald, Menotti, Mário de Andrade e Anita Malfatti, compõe o chamado Grupo dos Cinco, que teve vida curta. No final de 1922 ela decide voltar para Paris, mas havia um Oswald no meio do caminho. Esse homem impetuoso, apaixonado e um mestre da ousadia a seguiu pela Europa e teve com ela mais que um casamento. Fizeram uma parceria intelectual poderosa em que um alimentava a arte do outro. Em 1923, Tarsila passa a travar contato com mestres cubistas, entre eles Picasso, Fernand Léger e André Lothe. De Léger guardará influências que serão visíveis em muitos dos seus trabalhos. Nesse período conhece artistas do porte de De Chirico, Stravinsky, André Breton e Blaise Cendrars.
Suas telas estão nitidamente cubistas, mas impregnadas de uma brasilidade que se manifesta sobretudo nas cores, que Carlos Drummond tão bem definiu: “O amarelo vivo, o rosa violáceo, o azul pureza, o verde cantante”.
Em 1924, depois de uma viagem feita com Oswald e Blaise Cendrars às cidades históricas de Minas Gerais, atirou-se a uma pintura que Sérgio Milliet definiria assim: “Cores ditas caipiras, rosas e azuis, as flores de baú, a estilização geométrica das frutas e plantas tropicais, dos caboclos e negros, da melancolia das cidadezinhas, tudo isso enquadrado na solidez da construção cubista”. É a fase Pau-Brasil registrando cidades, paisagens e tipos comoventemente brasileiros.
Em 1928, há dois anos casada com Oswald de Andrade, a união Tarsiwald produz ousadias. Ela decide dar ao marido um inusitado presente de aniversário: pintar um quadro “que assustasse o Oswald, uma coisa que ele não esperasse”. Nasce então o Abaporu, figura monstruosa de cabeça pequena, braço fino e pernas enormes, tendo ao lado um cactus cuja flor dá a impressão de ser um sol. Ao ver tal imagem, Oswald realmente se assusta. Acha a composição extraordinária, selvagem: “Uma coisa do mato”.
O poeta Raul Bopp, chamado a ver a proeza, concorda com a avaliação. Tarsila foi na esteira e resolveu dar um nome também selvagem ao quadro: Abaporu, palavra encontrada no Dicionário de Tupi-Guarany de Montoya, e que em língua indígena significa “antropófago; homem que come carne humana”. A partir dessa obra – até hoje a mais valiosa da arte brasileira e atualmente fazendo parte da coleção do argentino Eduardo Constantini - se constitui a fase dita por isso mesmo antropofágica de Tarsila. Oswald elabora o Movimento Antropofágico, com direito a manifesto e à Revista de Antropofagia. A pintura de Tarsila cresce. As formas volumosas, as cores exuberantes, um quê de Brasil autêntico desafiando tudo o que se via na pintura de então.
1929 foi um ano trágico. Afetiva e socialmente. O crash da Bolsa de Nova York resultou na perda de sua fazenda. E o casamento com Oswald – notório mulherengo – também acabou-se.
A última fase artística de Tarsila resultou de sua viagem à União Soviética em 1931. Voltou marcada pelo que observou, em especial o drama operário e a miséria das multidões. Ë nessa época que surgem obras-primas como Operários e 2a Classe. Fase de alto engajamento, em que chegou a ser presa por causa de suas idéias políticas.
Os quadros de sua chamada fase social registram dores imensas, estampadas em figuras miseráveis, injustiçadas. Opressão, desigualdade e rostos desarvorados invadem suas telas.
Depois disso, Tarsila não mais inaugurou novas experiências: limitou-se a revisitar as fases anteriores, concentrando-se em temas como folclore e religião Sua última grande obra — o mural Procissão do Santíssimo em São Paulo no Século XVIII, é de 1954.
Morreu a 17 de janeiro de 1973, aos 86 anos deixando pouco mais de duas centenas de quadros, alguns desenhos e esculturas. É relativamente pouco, mas fundamental para uma busca que prossegue até hoje: a consolidação de uma pintura nacional.
a tarsila
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